segunda-feira, 24 de março de 2014

Carta/ relato - de parir


Relato de Parto – Nascimento do Antônio

“são as águas de março fechando o verão, é promessa de vida no teu coração...” (Tom Jobim)

O verão se encaminhava para o fim e até então um calor escaldante nos fez entrar na banheira – que ficou na varanda/puxadinho – algumas muitas vezes... A maioria das roupas não estavam lavadas, estava finalizando trabalhos na escola e me obriguei a afastar para dar conta de organizar a casa para a chegada do nosso filho.
E a chuva veio, águas de março fechando o verão deixaram-me tensa: onde as roupas secam? Morar em comunidade é ter uma família gigante, uma mãe querida deixou as roupas todas secarem na secadora.
Quase tudo pronto, dobrado e ajeitado... a mala do Antônio pronta, com nome em tudo.
Fechamos 38 semanas, barriga enorme, andando devagar, uma mansidão e ansiedade se intercalavam no peito. Li muito, ouvi mais ainda e carregava o medo de não conseguir, medo da grande passagem, medo de não dar conta... E deixei tudo vir à tona, conversando comigo, com os outros, com o bebê...
Dançava todos os dias e era bonito ver a barriga se mexendo, o corpo se renascendo para dar amplitude para cada movimento. Me olhei todos os dias, namorava a barriga e ensaiava respirações, ensaiava a dança, me preparando para entrar no palco e embora treinasse, não se tem a mínima ideia de como será aquele espetáculo. Escrevi o plano de parto, aspirando que tivéssemos um parto de respeito e de amor.
A equipe que escolhemos para nos acompanhar inspirou confiança e nos desafiava a olhar pra dentro... nos apaixonamos por cada um.
O último dia em que nos encontramos com a doula Zezé a conversa ressoou em lugares desconhecidos e a volta pra casa demorou muito.
A última consulta com Dr. Ricardo e a parteira Zeza foi muito importante também. Estava me sensibilizando para o nascimento em casa, depois de ler “se me contassem sobre o parto” do Leboyer quando chorei ao ver uma fotografia do quadril da mulher, dos ossos e do espaço estreito que o bebê passa para nascer. Sabia que tinha uma equipe que garantiria um parto digno pra mim, mas não estava segura sobre como meu bebê seria recebido no hospital... E perguntei: “e se quiser ficar em casa?” ao que Dr. Ricardo respondeu: “você vai ter que me convencer”.
Aquela conversa abriu o espaço para me jogar no desconhecido e confiar. Sem muitos planos ou expectativas, mas aspirando um parto natural.
Há um ano atrás, minha bolsa estourou ao sair da casa de uma amiga, senti o líquido escorrer e na hora meu corpo gelou. Senti que chegara a hora. Mesmo assim, uma amiga doula que também estava por lá veio conversar comigo e com meu marido e muito calmamente nos disse para ligar para nossa doula e que sim, era a bolsa.
Viemos para casa e o percurso parecia infinito... liguei para a doula que nos orientou a ir para o chuveiro e ficar atentos a alguma contração.
Chegamos e fui para o chuveiro, fiquei sentada numa bola e as contrações embalaram... Uma amiga veio e fez a minha mala e do meu marido. Liguei o rádio e selecionei música de samba, de afro... Enquanto eu falava onde as coisas estavam e o que deveria pegar para colocar, meu marido passava o recado de outro jeito... eu ria por dentro, mas já estava começando a me concentrar no que acontecia com meu corpo. Eu oscilava entre estar ali e aqui.
Pedi para chamar a equipe, pelo menos alguém para me ver, pois depois de uma hora as contrações seguiam de 2 em 2 minutos e estavam ficando muito intensas.
Eles chegaram de mala e cuia e a presença deles foi suficiente para eu liberar qualquer apreensão e me entregar para a catarse que foi o trabalho de parto. No primeiro exame de toque levei um susto, porque acho que a única coisa que eu não sabia era que esse exame era feito durante a contração e aquilo me deixou mais tensa... No segundo estava com 3 de dilatação... pensava: uau, só 3 e estou nesse estado já!
Fiquei bastante tempo no chuveiro e as contrações iam aumentando de intensidade... Era madrugada, estava tudo quieto e escuro, o som era da água, das minhas respirações e dos meus urros.
Na mente muitas frases, consolos, choros... mas eu não conseguia externalizar quase nada, entre uma contração e outra eu quase deitava no chão... Sentia muito cansaço e os intervalos eram muito rápidos.
As contrações parecem ondas de mar mesmo e provavelmente essa metáfora me levou para o oceano... Lembrei de levar alguns caldos no mar, da sensação de medo e da impossibilidade de fazer qualquer coisa. Era apenas se entregar e deixar passar. E deixei o mar me tomar, o mar que avançava dentro e fora.
Lembro que logo que começou pensei: é isso. Chegou a hora e não adianta arrumar a casa, pentear o cabelo, não há o que adiar. É o que se tem para viver agora. Então: vamos viver, do avesso e inteiro.
Eu tremia, tremia inteira. Os dentes, as mãos, tudo. Meu marido pegou um casaco de flanela para eu vestir quando saía do chuveiro. Lembro que na vida tremer sempre me causava um constrangimento para mim mesma... me lembrava de alguma Vanessa frágil, da qual eu não gostava. Mas ali, tremer não me incomodou... eu acolhi e deixei a Vanessa tremer. Conectei com a dança afro, que trouxe para a  superfície a energia e a força da terra: dançando aprendi que podia ser delicada e forte.
Percebia tudo muito nebuloso, escutava as vozes que me incentivavam, lembro da Zeza, me chamando a fazer cócoras quando vinha a contração... Lembro que a sensação era de nenhuma força, mas ela pegou nas minhas mãos, olhou dentro e desceu junto comigo, respirou junto comigo e subiu, junto comigo. Foi uma vez, mas suficiente para me lembrar que eu podia fazer.
No terceiro exame ouvi “7” e sabia que estava perto, sabia que estava chegando no ápice... Sabia tudo de uma forma quase intuitiva, os pensamentos nem de longe se organizam como agora... É tudo em outro tempo. Muito parecido com o sonho ;-)
Estava no quarto, só a luz de velas, quando fiquei só e apenas meu marido entrou e fechou a porta:
- Amor... tocou a concha, são 5h30. - moramos em uma comunidade budista e nessa hora há uma prática de meditação diária. - O Dr. Ricardo perguntou se você quer ir para o hospital.
- Eu não vou sair daqui.
- Ele disse que podemos ir, mas precisa ser agora.
(silêncio e voltando para minha caverna)
Lembro que não elaborei nada, mas a ideia de entrar em um carro e depois em um lugar cheio de luz realmente não me atraiu.
Voltei para o chuveiro e aí sim os urros eram de loba. Saí de novo e feito o último exame “10, vai nascer!” Uma vontade gigante de sentar no vaso... voltei para o banheiro. Pouco depois voltei para o quarto e vi a cadeirinha que nos ajuda a sentar de cócoras.
Nossa, não manifestei externamente, mas dentro eu dei um salto de alegria! Sabia que estava perto de ver meu bebê! Ia acontecer a parte mais emocionante!
José, meu marido, ficou sentado na cama, apoiando minhas costas. Nós virados para a janela amarela, leste... O sol começava a iluminar, o dia 24 de março de 2013 amanhecia. Lembraram da música, mesmo tremendo muito (seguia tremendo) selecionei a música que receberia meu filho: Tom Maior.
A partir daí as contrações eram diferentes, eu sentia muito apertado embaixo, muita intensidade e quando a contração vinha eu fazia força... Nesse momento o Dr. Ricardo (ao lado, com a máquina a postos, tocou na minha mão):
- Agora, Vanessa, é relaxar mais, menos força.
Segui respirando, mas relaxei e pude perceber meu corpo todo fazer força, empurrar o bebê... é uma força que eu não controlava, eu era força, urros, presença, suor e entrega.
Senti a cabecinha dele coroar... estava chegando! Senti o círculo de fogo e lembro de pensar “ah, olha o círculo de fogo!” e Antônio escorregou, senti cada partezinha dele saindo de mim.
Não sei dizer o que senti... era um céu, uma imensa possibilidade, mas nada definível. Aquele ser, que a parteira recebeu e acarinhava e secava delicadamente veio logo para meu braços.
Segurei meu filho, miudinho, no meu peito. Outono trouxe Antônio, junto com o sol.
Aquele ser, ainda ligado a mim pelo cordão, começou a tentar mamar. A Zeza me ajudava a posicioná-lo para favorecer a pega. Estava atenta a cada movimento, com energia e adrenalina!
Logo veio suco e comecei a sentir contrações novamente (era a placenta que ia nascer), Antônio sugando no peito, imediatamente o útero começava a trabalhar. A Zezé consolou “Fica tranquila que essa escorrega”. E assim foi.
Parto natural, trabalho de 9 horas, sem interferência, períneo íntegro, bebê nos meus braços. Ho! Que alegria! Todos os procedimentos para pesar, medir e colocar roupa em Antônio foram feito comigo bem pertinho.
Meu marido pegou o que tinha na geladeira e começou a fazer um café da manhã para todos!
Antônio depois de mamar, ser trocado, adormeceu ao meu lado na cama. Eu e José o contemplamos, inebriados pelo milagre que estávamos vivendo.
O primeiro sentimento que pude reconhecer em nossa língua foi gratidão.
Agradeço José Ricardo, meu companheiro que foi um valente e querido, que confiou em mim e me deu todo espaço, me assistiu e me amou todos os instantes. Agradeço a doula Zezé e a parteira Zeza que foram essenciais para que eu mantivesse a coragem de receber as contrações em movimento, para que eu seguisse me entregando, me abrindo e me conectando comigo. Agradeço o Dr. Ricardo, que foi o homem de vidro, seguiu na cozinha, fotografando, ouvindo atento as vogais dos meus urros e convencido, me acompanhou no nascimento do Antônio em casa. Agradeço a minha mãe, que sempre trouxe o nascimento como algo que sabemos fazer, agradeço as minhas avós e tias, por me inspirarem, agradeço a todas as mulheres, deusas, dakinis, yoquines, lobas, feiticeiras que dançaram comigo e agradeço ao meu filho Antônio, por nascer, junto comigo.

Amor imenso,
Assinado: Mamãe

p.s. o primeiro domingo do outono de 2013 foi de um sol lindo, um céu azul imenso, um ventinho leve e um silêncio antes nunca experimentado... A vida renascida!